A Carta de Sir Teegoh Von Winggenstien

País das almas perdidas, 05 de Novembro de muito, mais muito, tempo atrás.
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Meu prezado,
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Por mais que me faltem as palavras. Por mais voltas tenho eu que dar para então chegar ao começo de um risco no papel amarelado pela espera, tenho que lhe dizer algumas coisas nesse momento:
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Mas, por onde devo eu começar? Será que devo te convidar para jantar comigo está noite? Talvez sim! Mas para um jantar descente terei eu que esperar uma terça-feira de boa lua, e hoje ainda é domingo e o céu está fechado... Pois que tristeza. Acho que você ia gostar de comer torta de chocolate na sobremesa.
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Por tanto pensar e querer oferecer-lhe algo que simbolizasse meus sentimentos cai no telhado daquele montinho de livros. Fui até o porão. Procurei por lá os cacos que sobraram de mim mesmo depois da nossa despedida.
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Na volta daquele dia de luz alaranjada, banhei-me ao crepúsculo lilás e fui caçar as cotidianas estrelas do céu bem grande. Não sabia bem, mas atrás de mim vinha sorrateiramente a voz de uma má ventura. Ela dizia, como o sopro dos ventos anunciando a tempestade, que naquela noite nem o perfume mais doce das rosas seria capaz de amolecer o coração de pedra da Senhora Morte.
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Como já havia eu sido avisado que receberia uma visita muito importante, decidi correr para o meu castelo de cristal e preparar o chá. Qual será o chá preferido dela? Talvez camomila? Talvez flores silvestres? Talvez, por fim, anil, quem sabe? O mais prudente é ter as três opções à mesa e deixar que ela mesma escolha!
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Nesse tempo todo, o que fizera eu para receber essa visita tão importante assim como tão inesperada? Não me importava mais... Fui comprar flores sozinho, afinal não só são os castelos e seus jardins que necessitam de flores. Os defuntos também precisam delas!
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No titilar dos sinos, lá das terras distantes, sabia que era o sinal: ela estava por vir. Acho que naquele momento o cansaço foi mais forte do que os meus sonhos. Adormeci na poltrona perto da lareira, onde os livros esperam ansiosamente até hoje para serem lidos.
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Não sei quanto tempo durou aquele cochilo, mas foi tempo suficiente para minha doce e confusa vida passar em minha mente como um filme. Não sei se poderia dizer que gostei de tudo o que eu vi... Achei tudo muito sem graça depois daquela escolha, pois os momentos verdadeiramente bons só aconteceram antes de eu me enrolar em minhas próprias pernas e nas entrelaças dessa tal decência da sociedade, que tanto diz ser que mal é por nada o que é de fato.
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Percebi que deixei de fazer o seu presente e sonhar com o nosso futuro. Meus sonhos, que não eram mais sonhos, haviam ficado para trás, junto com o sorriso da infância e a alegria de se completar os tão almejados dezoito anos.
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Tornei-me um adulto, mas nem sei o que foi ser esse negócio... perdi tempo demais apostando na corrida do sucesso e das aparências que, por fim, acabei deixando de lado o que mais me fizera feliz.
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Lembrei-me que uma vez me disseram que a luz da idade é quando passamos à linha dos sessenta. Quando cheguei por lá, não sabia mais o que significava viver. Tinha tudo, mas não tinha nada: tudo estava vazio, tudo estava oco e sem cheiro, sem gosto, sem nada.
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Ao acordar do cochilo, a Senhora Morte exibia seu cajado dourado, sentada na poltrona à minha frente. Tomamos o chá calmamente, como há muito tempo não fazia eu. Senti o paladar de cada coisa, de cada minuto. Não pude deixar de contar o tempo e as lágrimas fizeram com que a minha barca das aparências naufragasse.
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Com toda a classe de uma dama que recebeu a mias alta educação, a Senhora Morte disse-me calmamente que já era hora de partirmos. Ainda com o tom de voz doce e contínuo ela me perguntou: “Caro senhor, tu fizestes fortuna, tivera a melhor e mais falsa rede de amigos, estava tu também à viver com a nata da sociedade. Acho que viverás com o melhor que podias, estou certa?
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Naquele instante percebi que por detrás da fina educação da Senhora Morte havia o gelado coração da ironia, que tocou minha alma, revelando-me o que eu realmente fui.
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Não foi preciso responder a pergunta. No instante seguinte, a Senhora Morte, com um único golpe e um sorriso exasperado estampado em sua face, separou a minha cabeça do resto do corpo. No momento seguinte, agora com os olhos esbugalhados como de uma criança prestes a desembrulhar o presente que acabara de ganhar, ela arrancou meu coração do meu peito com a ajuda de um punhal e, com sangue ainda quente que jorrava de seu palpitar, a Senhora Morte se embebedou.
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Minha alma se perdeu na vastidão daquela noite amargurada. Eu vi a Senhora Morte partir com meu coração em uma bandeja dourada. Ela sorria escandalosamente satisfeita, pois nunca tinha visto um coração tão vazio como o meu... Foram as minhas escolhas que o esvaziaram, conservando-o incólume. Deixei meu coração vazio de sentimentos quando, naquela encruzilhada decidi ir pelo caminho mais fácil. Não quis arriscar, mesmo sabendo que podia confiar no amor e em ti.
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O que resta de mim agora é uma alma que foi brutalmente separada do seu corpo no momento em que percebeu que a vida era para ser vivida por causa do amor. Lá, naquele chão de granizo eu via o meu corpo estendido e encharcado de sangue. Mais ao lado, minha cabeça mantinha uma expressão apática, exatamente como fora a minha vida toda depois daquela encruzilhada... Naquele lugar triste e solitário e quis chorar por toda a eternidade, mas eu não tinha mais lágrimas...
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Desculpe se com minhas palavras de uma alma perdida eu incomodei seu jovem coração. Sei que estás sempre à encontrar encruzilhadas da vida, sei que és difícil viver nesse lugar chamado Dogville, mas vocês são fortes, muito fortes (no mínimo dez vezes mais fortes do que isso que imaginaram ser nesse momento) e o amor, esse sentimento que decidi esvaziar meu coração ao deixa-lo para traz, é o alimento da alma! Sem ele não há motivos de se manter um corpo inerte, mesmo que for dentro de uma sociedade hipócrita. O amor nos nutre para saber enfrentar o mundo sem precisar enfrentar as inquisições, nos ensina a ser maleável e nos faz ser pessoas boas.
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Não desista! E se seu dia não foi uma terça-feira ensolarada... talvez, até mesmo, o exato momento que estás a terminar de ler minha carta seja o melhor momento de dizer que o ama.
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Se no mais, dir-se-ia eu para ti: cuide bem do seu amor, pois assim está a cuidar de você mesmo. Mas essas são as palavras de uma alma perdida acho que você não deveria dar atenção, deveria? Afinal, a escolha é sua! O caminho é seu!

Sir Teegoh Von Winggenstien

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