A necessidade

Para além de qualquer silêncio, pretendi ser as intempestivas noites de verão, mas só consegui efetivar as inoportunas tempestades de inverno. Gritei! Gritei muito! Até o ponto de não mais agüentar ouvir minha voz. Como se estivesse a conquistar na força uma luta cujo vencedor levantara o estandarte antes mesmo de eu nascer. Eu tive que perder a voz tentando fazer com que me escutassem, para perceber então que não basta apenas ter boa audição para saber ouvir.

Simplesmente porque pessoas de opiniões são, por natureza, surdas. Tornando qualquer empreitada contra essa indagação uma cruzada casmurriana! As opiniões formadas só servem para estagnar as estruturas que todos, sem exceção, reclamam e tentam descartar ou abolir. Desde um ultra-relativista cético até o maior dos ortodoxos religiosos bebem do mesmo cálice sagrado: os dogmas.

Em nenhum momento colocamos essas convicções para enfrentar o poder da dúvida. Onde, uma simples conjunção de duas palavras seria capaz de abrir universos de possibilidades: por quê? Temos a facilidade de proferi-las quando questionamos as convicções alheias, afinal, enxerga-se melhor o umbigo do outro... Neste sentido, é claro, a dúvida torna-se a arma contra nossos arquiinimigos da história e não uma ferramenta de introspecção. Este texto mesmo é a materialização de uma convicção, tão ruim como qualquer outra. Pode ser até que você aproveite algo, caso a beba de uma fonte cartesiana, mas, mesmo assim, você é tão tolo quanto eu.

Nessa caminhada descobri ser capaz de sintetizar e historicisar a filosofia e os pensamentos ditos complexos. Percorri as encruzilhadas de Virgínia Woolf, Proust e Lispector. Embriaguei-me com Goethe, Calvino e Gabriel Márquez. Viajei pelos mundos de Andersen, Carroll e Tolkein. Mas nunca fui capaz de atingir em textos próprios a profundidade intelectual desses senhores.

Também conclui que nem sempre vou entender o que queriam os outros dizer. Afinal, não seria capaz, e tampouco, petulante para encarar tal empreitada em um mundo onde as palavras ganham significações subjetivadas ao gosto do consumidor. De todo modo, me delicio com a possibilidade de sentir o vento tocar o meu resto e perceber o simples fato de poder viver.

Já amei. Amei como Caravaggio, o corpo humano. Amei como Frida Kahlo, a possibilidade de procriar. Amei como Picasso, o outro e amei como Manet, a saudade. Descobri o amor próprio. Perdi todos os amores ao conhecer o tempo. Pois ao percorrer os caminhos do desejo, através da visceral proficuidade dos instintos descobri que dessa liberdade só me escravizei, assim como Rousseu argumentou, lá no século XVIII.

Perdi tanta coisa que se elas pudessem ser contadas como órgãos humanos eu teria perdido duas vezes o que sou. Exageradamente idealizei tantos mundos que se findaram na minha falta de capacidade que entendi porque o pequeno príncipe morou em um satélite solitário. E nessa caminhada descobri que mestres existem. E eles me ensinaram a ser melhor, mas talvez eu nunca tenha conseguido demonstrar algo realmente digno de ser memorável.

De príncipe a esperar e castelos imaculados, eu vivenciei os meus vinte e seis anos, para chegar hoje e assumir que sou demasiado humano para perfeito ser. Perdi a capacidade de chorar a partida dos amigos pois nunca fui sincero com eles. De todo modo, não me culpo, afinal, nunca fui sincero comigo mesmo. Fui falso e invejoso. Afastei-me com medo de ferir ou com medo de ser ferido. Morri muitas vezes ao sentir o desprezo de quem eu amei. Nem todas as feridas cicatrizaram... creio que não cicatrizarão.

Corro para a casa dos vinte e sete anos sem grandes perspectivas, porém, seria insensato não perceber que viver significa necessariamente crescer (mesmo que seja apenas para os lados). De todo modo, um certo sorriso brota no meu rosto que ainda não foi marcado pelo tempo e pode ser que amanhã eu descubra aquilo que um dia eu consiga me tornar aquilo que Nietzsche sugeriu: “Torna-te aquilo que és”

Comentários

Anônimo disse…
Pois claro!... Só faltava mesmo que Nietzsche não fosse convocado para completar o "puzle"!... :)

Essa coisa de tornar inconciliáveis a humanidade e a perfeição, não passa de um mito muito bem arquitectado. O que não significa, se calhar com alguma incoerência, que a perfeição seja possível.

Há sempre novos degraus que se sucedem no topo da escada, mas esse é o único desafio que verdadeiramente importa. O único que, com efeito, sabemos não poder vencer.

Resta continuar a tentar. É preciso não desistir, ainda que as perspectivas não nos sejam favoráveis. Convém, em todo o caso, manter uma certa dose de racionalidade para não virmos a ser surpreendidos.

Felizmente que temos o exemplo de Ícaro!...

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