Denúncia


 Ele lavava as mãos calmamente. Entre seus dedos, meu sangue insistia em ficar grudado, denso na sua inútil composição, até escorrer ralo abaixo no ritmo do quase nenhum esforço, formando vértices do esquecimento. Para ele, o som da minha respiração quase inaudível era suficiente para ativar a mais pura ira de sua perversão. O salão que ele me deixava era frio, escuro, úmido e, naquele momento, ouvir o som das moscas que pousavam nas minhas feridas para se alimentar e botar seus ovos era o único sinal que eu ainda estava vivo.

Quando as mãos já estavam lavadas de qualquer sinal de pudor ou arrependimento, seu ritual passava a ser o de enxugar a face do suor fétido que o lembrava das imperfeições. Não com o mesmo zelo de antes, se apressara para buscar o próximo açoite e em mim proferir uma devassidão de silêncios e agressões. O prazer dele se mesclava entre o gozo da dominação e a sede infinita de grandeza.

Minha mordaça era ilusão, e meus braços e pernas estavam presas pela esperança de ver nele o que nunca existiu. Ele havia me envenenado com a sedução pueril e me amordaçado para que, quando seu prazer abusivo terminasse, seu deleite em se sentir superior pudesse se manter em seu ciclo social. De todas as alucinações que ele me deu, à de pensar que havia amor nele, foi a mais atroz.

Os estigmas deixados não desenharam na minha carne os destroços da tua depravação, elas foram cruéis demais para serem vistas, elas foram feitas por um perito para ficarem onde apenas eu sinta a angústia constante do torturador. Ele lavou as mãos e esboçou suas próprias versões de culpa ou arrependimento, iguais aos artifícios de uma mente psicopata. Ele negligencia o mal que causou e até o justifica. Ele continuou a viver. Eu também continuei.

O torturador veste a roupa de um cidadão do bem. Ele esconde sua face perversa através de uma ingenuidade forjada e uma complexidade rasa... Mas, sua mordaça em mim foi eficaz. E apesar das palavras falharem ao não conseguir traduzir a dor que carrego, ela não deixou de existir. Ela me ronda, como um fantasma vivo. E, sentar à mesa com um torturador é demais.

Assumo que a culpa da carência me levou à armadilha do torturador. Assim como assumo hoje a minha escolha de não tolerar mais nenhuma violência velada. Mesmo que com isso eu tenha que me podar de estar entre meus afetos. Eu continuo a pagar com a minha lucidez a escolha daquela excursão tortuosa que foi pensar que você pudesse ser algo bom. São marcas que carregarei na solidão, mas isso não foi uma escolha.

O torturador se vê como vítima, como consequência e replicador daquilo que ele recebeu. Isso pode até ter lhe dado ferramentas. Mas foi você quem desenvolveu a maestria do manuseio de cada uma delas. Talvez nome signifique “o último juiz dominante” e isso lhe fez achar que suas marcas deixadas aqui não teriam consequências. Eu chorei tardiamente por cada marca que me deixou, e hoje sou metade de mim, sou um parvo para você, mas não se esqueça que o gosto do acaso pode lhe dar um final muito mais condizente às tuas ações do que aquilo que escolhe ver delas.

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