Denúncia
Quando as mãos já estavam lavadas de qualquer sinal de
pudor ou arrependimento, seu ritual passava a ser o de enxugar a face do suor fétido
que o lembrava das imperfeições. Não com o mesmo zelo de antes, se apressara para
buscar o próximo açoite e em mim proferir uma devassidão de silêncios e agressões.
O prazer dele se mesclava entre o gozo da dominação e a sede infinita de
grandeza.
Minha mordaça era ilusão, e meus braços e pernas estavam
presas pela esperança de ver nele o que nunca existiu. Ele havia me envenenado
com a sedução pueril e me amordaçado para que, quando seu prazer abusivo
terminasse, seu deleite em se sentir superior pudesse se manter em seu ciclo
social. De todas as alucinações que ele me deu, à de pensar que havia amor nele,
foi a mais atroz.
Os estigmas deixados não desenharam na minha carne os destroços
da tua depravação, elas foram cruéis demais para serem vistas, elas foram
feitas por um perito para ficarem onde apenas eu sinta a angústia constante do
torturador. Ele lavou as mãos e esboçou suas próprias versões de culpa ou
arrependimento, iguais aos artifícios de uma mente psicopata. Ele negligencia o
mal que causou e até o justifica. Ele continuou a viver. Eu também continuei.
O torturador veste a roupa de um cidadão do bem. Ele
esconde sua face perversa através de uma ingenuidade forjada e uma complexidade
rasa... Mas, sua mordaça em mim foi eficaz. E apesar das palavras falharem ao
não conseguir traduzir a dor que carrego, ela não deixou de existir. Ela me
ronda, como um fantasma vivo. E, sentar à mesa com um torturador é demais.
Assumo que a culpa da carência me levou à armadilha do
torturador. Assim como assumo hoje a minha escolha de não tolerar mais nenhuma violência
velada. Mesmo que com isso eu tenha que me podar de estar entre meus afetos. Eu
continuo a pagar com a minha lucidez a escolha daquela excursão tortuosa que foi
pensar que você pudesse ser algo bom. São marcas que carregarei na solidão, mas
isso não foi uma escolha.
O torturador se vê como vítima, como consequência e
replicador daquilo que ele recebeu. Isso pode até ter lhe dado ferramentas. Mas
foi você quem desenvolveu a maestria do manuseio de cada uma delas. Talvez nome
signifique “o último juiz dominante” e isso lhe fez achar que suas marcas
deixadas aqui não teriam consequências. Eu chorei tardiamente por cada marca
que me deixou, e hoje sou metade de mim, sou um parvo para você, mas não se
esqueça que o gosto do acaso pode lhe dar um final muito mais condizente às
tuas ações do que aquilo que escolhe ver delas.
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