Carta de um aborto
Aos poucos, a voz foi baixando, justo quando me levanto da mesa de almoço. As travessas ainda pesadas das medidas perdidas, cuja única vantagem era poder alimentar qualquer esperança perdida de entendimento. Ele não olhou para os meus olhos em momento algum. Havia medo em se reconhecer, ou eu lhe causava todos os rancores possíveis. Aqueles rancores que mesmo quando caídos no deslembro, ainda se faz presente no nosso temperamento e se tornam engrenagens das inseguranças e invejas alheia.
As lagrimas vieram e eu não queria me acostumar vê-lo chorar. Mas a rotina nos traz apenas lágrimas entre as pontes intermináveis de silêncio entre um encontro e outro. Ele acendia o cigarro para tentar se acalmar. A voz se esvaziava algumas vezes, enquanto tentava brigar por espaço com as lagrimas. Nunca imaginei que poderia ser o passado tão presente, mesmo que quando todos desejam dias melhores. Enquanto eu me preocupava apenas em não me olhar no espelho das palavras, mesmo dedilhando em alguma coisa que se define como sendo eu.
O que são feitos dos meus sentimentos quando consigo me desvencilhar, transformando o meu sentir em um castelo de cartas? A beleza desta harmoniosa composição é inversamente proporcional à própria transitoriedade do desmoronamento. E, neste instante, sou todas as cartas espalhadas, neste caos todo chamado existir. Tal vil existência seria nada além do que o somatório de traumas dos nossos antepassados ou minha petulância em achar que meus sentimentos são meus?
Na noite passada, sonhei que encontrava minha eternidade e tive a certeza que nunca esquecerei o timbre dessa voz que tanto me deu o meu próprio eu. Mas, realmente não sei quem sou. Não me encaixo em qualquer regra binária de constrangimentos sociais estabelecidos. Em alguma instância da minha existência fui abordado e percebo hoje que também não é possível atingir uma rocha com uma não existência. Mesmo quando as minhas mãos estejam cheias da mesma natureza dura dele. Se me desdobro em nada e me guio no silêncio nada mais sou do que uma não existência digna do esquecimento.
Goya The Dog circa 1819/1823 |
Comentários